O Passageiro

Kell Smith - Era uma vez


Os trilhos do trem levam para uma estação vazia
Bons tempos aqueles que todos ficavam na expectativa do apitar da locomotiva
Como a vida segue e o tempo vai mudando os costumes
Vai construindo novas histórias, vivendo novas glórias, novos perfumes
Como era bom a chuva bater no rosto sujo de poeira
Nas brincadeiras de criança, das lembranças em volta da fogueira
Em que São João era um senhor velho de barba
Que a brincadeira era fruta, salada mista
Dos dedos entreabertos pra ver quem você iria escolher
Das tantas vezes que não sabia se esconder
Das tantas cartas escritas sem dizer quem era você
Engraçado como a vida passa e vai além
Dos chutes ao gol, dos tampões arrancados
Dos pés descalços e das tantas vezes que chorou
Dos tombos que levou, dos dias que só queria paz
Tanto faz, tanto fazia se as contas haviam chegado
Era a pé que sonhávamos com nossos belos carros
Que nos perdíamos contando os passos
Das tantas histórias, das tantas estações
Como jubas de leões, levantavámos e já iamos jogar bola
Na escola se achava os mais fodas
Mas não aguentavam nem a primeira porrada
Fico a olhar esses trilhos, caminhos tão vazios
De como nos distanciamos de nós mesmos
Espalhados em uma gigantesca teia de binários
Como uma velha estação antiga e vazia
Ao me olhar no espelho da pia
Sentindo a água fria imaginando todos aqueles dias
Fico apenas com as lembranças
Das brincadeiras de criança
Quando comer de verdade era quase explodir a pança
De se frustrar quando sua mãe te mandava pro banheiro
E você se agitava mais que um pandeiro
Das cartas deixada nos correios sem nome
De pular a cerca e comer manga pra sumir a fome
De caminhar nos córregos da vida
Pescando bambu ao invés de bagre porque não sabia pescar
De viajar na maionese na primeira vez que tentou beijar
De ter a prova roubada enquanto seu colega colava
E você levava o zero e ia chorando pra casa
Sorte que ele é a razão de você ainda escrever
Em um momento que quase viu a vida se perder
Mas sabemos que somos apenas um passageiro
Que vive a vida de presentes às vezes com medo
Às vezes um pouco cheio, do futuro, querendo reviver o passado
Como se fosse um pedaço arrancado de algo
Colocado debaixo do braço e levado para todos os lados
Num caminho longo de volta pra casa
Somos passageiros sentados observando a chuva
Recobrando o passado, como se nele não existisse problemas
De como pulavámos na rua enquanto a chuva batia o rosto
De como a bola suja ardia
De como corríamos até onde não havia rima
Como se ir ao passado fosse voltar da escola pra casa
E sentir ao entrar na porta que sua mãe fez o café
Mesmo que ela esteja brava pela bagunça da casa
É como sentar no trem e olhar pela janela
Olhando ela, com tanto amor, preparando a janta
E imaginando como Deus é bom
De como ele nos dá um dom
O dom de lembrar que somos apenas um passageiro
Que amar não é um medo partido ao meio
Entre o passado e o futuro
Mas sim o bendito fruto, entre as mulheres, minha mãe
Que sofreu no silêncio do amor que ela ainda tem
Deus é tão bom em me permitir de lembrar com amor do meu pai
Como se ele fosse presente todas vezes que chamo meu filho
Sentado nessa janela vendo até onde esse trem vai
Se ele não vai sair do trilho
Se o passado não perderá esse brilho
Esse cheiro de mãe
Esse cheiro de infância
Dessa sensação que vai
Muito além de vagas lembranças
Ainda bem que somos apenas um passageiro
E que vivemos o presente formado por um passado eterno, tão terno
Que ao descer na última estação
No último apitar, ao descer do vagão
Esse passado esteja num porta retrato
Com as pessoas que amamos até o fim de nosso tempo

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